sexta-feira, 7 de maio de 2010

Crítica da Astrologia de Senso Comum

Na acepção da Filosofia Contemporânea, o senso comum é um conjunto de opiniões e valores característicos daquilo que é coerentemente aceito em um meio social determinado. Consiste em uma série de crenças admitidas no seio de uma sociedade determinada e que seus membros presumem serem partilhadas por todo ser racional. (1)
Uma corrente expressiva do pensamento filosófico e científico possui - com toda pertinência segundo minha opinião - uma atitude de desconfiança e criticismo em relação às posições e expressões do senso comum. Essa reflexão sobre as limitações do senso comum já eram realizadas na Antigüidade por Sócrates e Platão. (2)
Devemos entender que, numa linguagem não-técnica, o senso comum, nada mais é do que nossa visão corrente, o entendimento comum que temos sobre qualquer tema, i.e., nossa opinião (do grego “doxa”) tal como se apresenta comumente. Sócrates tinha uma visão negativa da opinião corriqueira do senso comum como insatisfatória: seu questionamento das crenças e opiniões que temos apontava que as idéias e concepções das pessoas, em geral, e da própria sociedade são vagas, imprecisas, parciais, incompletas, erradas, equivocadas e/ou preconceituosas.
Nossa experiência, de onde as opiniões de senso comum provêem, se revelam inadequadas, inconfiáveis e insuficientes. De fato, é inacreditável como muitas das opiniões que temos em nosso dia-a-dia, e acreditamos ingenuamente estarem tão corretas ou acertadas, quando colocadas sobre o escrutínio científico ou filosófico se mostram completamente infundados, errados... Para quem define a arte como uma forma sensível e intuitiva de crítica, observa que essa também se constitui, muitas vezes, numa forma de ruptura e oposição ao senso comum.
O método socrático vai mostrar que, com freqüência, não sabemos aquilo que pensamos saber. Temos, no máximo, um entendimento imediato e parcial, porém, que se revela distorcido ou incompleto, ou ambos. A reflexão filosófica revela a fragilidade do entendimento do senso comum habitual e aponta para a necessidade de aperfeiçoá-lo, e mesmo, corrigi-lo através da reflexão crítica.
Para Sócrates, o princípio da sabedoria só pode se dar pelo reconhecimento da própria ignorância, ou seja, da constatação de que não sabemos o que “pensamos” saber. Essa idéia está contida no aforismo proferido por Sócrates: “Só sei que nada sei”. Essa afirmação mostra que, para Sócrates, a legítima sabedoria só é obtida através de uma atitude de humildade gnosiológica, i.e., uma postura de modéstia quanto ao próprio conhecimento. O domínio da opinião (senso comum), com todos os seus autoenganos, distorções e preconceitos, ao contrário costuma ser um terreno de alta arrogância epistemológica, inflação de ego e vaidade intelectual dogmatista. Assim, Sócrates afasta a noção de um possível verdadeiro conhecimento (episteme) do simples domínio da opinião (doxa) pessoal ou coletiva.
Platão dá prosseguimento ao rompimento do verdadeiro conhecimento (entendido como posse de uma representação correta do real) com a imprecisão e os preconceitos do senso comum, através de um procedimento dialético de reexame crítico desses últimos. Na interpretação platônica da filosofia socrática, o método dialético é aquele que procede à refutação das opiniões (preconceitos) do senso comum, explicitando as suas contradições intrínsecas, objetivando sua substituição por concepções mais precisas e racionais, isto é (i.e.), verdadeiras.
O perigo e o problema maior do senso comum, é que seu dinamismo facilita a produção, manutenção e transmissão de muitas formas, expressas ou disfarçadas, de preconceito. E isso se torna ainda mais problemático, quando constatamos que a modalidade de pensamento e de discurso dominante que permeia o senso comum (que não é outra coisa, senão o automatismo de nossas idéias usuais) é altamente impreciso, falacioso e, mesmo, irracional e infundado.
O preconceito se define como opinião ou crença admitida sem ser discutida ou examinada, internalizada pelos indivíduos sem se darem conta disso, e influenciando seu modo de agir e de considerar as coisas. Segundo uma reflexão filosófica, o preconceito é constituído por uma visão de mundo ingênua que se transmite culturalmente e reflete crenças, valores e interesses de uma sociedade ou grupo social. O termo possui, nesse contexto, um sentido eminentemente pejorativo, designando o caráter irrefletido e freqüentemente dogmático dessas crenças, que se revestem de uma certeza injustificada.
Entretanto, como alegam os autores Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, é preciso admitir que nosso pensamento inevitavelmente inclui sempre preconceitos, originários de sua própria formação, sendo tarefa de uma reflexão crítica precisamente desmascarar os preconceitos e revelar sua falsidade. (3)
Esse é exatamente um dos aspectos do projeto filosófico de Platão (e também, do meu projeto gnosiológico pessoal): ir contra a opinião (sem justificativas, ou sequer, coerência e consistência racional) que não se reconhece como (apenas) opinião, mas que se apresenta como “certeza”, que se baseia em “fatos”, na realidade particular, concreta, na experiência, tomando como totalidade do real e como fundamento da certeza, aquilo que é parcial e contingente.
Platão visou denunciar que a opinião (doxa) ou senso comum tem uma falsa (e orgulhosa) consciência de si mesma, sendo o oposto da verdade e do conhecimento. Faz parte da “doxa” ou opinião vulgar, ocultar suas inconsistências da experiência (incluindo interesses e preconceitos) sob um falso discurso de unidade.
A Astrologia acaba não se encontrando livre desse tipo de distorção. Pelo contrário, sua condição marginal (no sentido de algo que está à margem) frente às supostas formas de saber crítico como a ciência, a arte e a filosofia, viabilizam a sua apropriação por parte da maior parcela alienada do senso comum, no contexto de publicações populares que pouco ou nenhum comprometimento possuem com a precisão dos conceitos astrológicos, bem como dos infrutíferos debates virtuais em comunidades de relacionamentos (especialmente em algumas comunidades do Orkut, mas não em todas) que, retirando algumas exceções, pouco acrescentam em questões e respostas astrologicamente relevantes.
Não seria estranho algumas vozes que insistem em enxergar algo de valioso ou positivo no (deprimente e alienado) domínio da “doxa” objetarem que a massificação e apropriação do discurso astrológico pelo senso comum, não deixa de ser uma forma de democratização de uma modalidade de conhecimento ancestral da humanidade - a astrologia – e pior seria a sua repressão e exclusão. Mesmo que concordemos que isso seja verdade, por um lado, não deixa de ser igualmente verossímil, embora menos óbvio, que qualquer projeto informativo de permissividade democrática costume resultar no rebaixamento intelectivo e crítico dos discursos manifestos e produzidos, muitas vezes para níveis dramáticos de alienação e impertinência. Isso se torna ainda mais constatável em esquemas de organização expressamente anárquicos.
Um dos paradoxos da democracia (e mesmo da anarquia) é que a opinião incompetente, e mesmo contrária ao próprio sistema em questão, também tem seu espaço de manifestação garantido, ou não seria uma democracia (ou anarquia). Mas, esse não é um problema sem solução (e também não deve ser entendido como um argumento contra a democracia, nem contra a democratização do conhecimento, e muito ao contrário, é uma crítica e um alerta para se buscar saídas para seu aperfeiçoamento): afinal, já foi dito que não existe democracia real, sem educação e esclarecimento.
Isso dito, também vale para a Astrologia, que em sua forma de estudo mais evoluído e prática avançada, não tem nenhuma relação com as formas hipostasiadas dos falsos conceitos e “preconceitos astrológicos” tão comuns, no submundo de suas representações de senso comum.
Formulações sobre “bons” e “maus” signos, mapas “fortes e fracos”, adivinhações rigidamente cristalizadas, injúrias baseadas na reificação de supostos caracteres astrais, alegações dogmáticas (porém, falsas) de conhecimento, enfim, tudo isso aliena o debate reflexivo sobre questões relevantes para o saber astrológico.
É importante enfatizar que a reflexão, aqui realizada, se refere a algo mais do que apenas “falta de conhecimento astrológico”, argumento que poderia ser usado para justificar as distorções da chamada “Astrologia de Senso Comum”, designação que sugeri para apontar a apropriação do discurso astrológico num contexto social massificante e acrítico, que distorce arbitrariamente o saber astrológico, tornando-se na verdade, um “não-saber”.
Mais do que “falta de conhecimento astrológico”, essa reflexão denuncia as formas difusas pelas quais os preconceitos do senso comum invadem o discurso astrológico tentando legitimar cosmovisões estereotipadas, segregacionistas e/ou alienantes, ao invés de reflexivas e esclarecedoras.
O projeto de uma Astrologia Crítica, moderna (ou melhor, ainda, Contemporânea), e amadurecida deve permitir o desmascaramento, a desmontagem, ou ainda, a desconstrução dessa realidade distorcida, alienante e estereotipada. Como na Filosofia (e mesmo na Psicologia, que são saberes com que a Astrologia pode e deve manter uma interface em contexto interdisciplinar), o ponto de resolução dessa problemática se situa no nível do discurso, do diálogo, do logos.
Devemos saber que o discurso é um construto que se presta à manipulação, e por isso, deve se submeter às regras de inteligibilidade e de certos princípios argumentativos, sob pena de não realizar sua função comunicativa. O discurso astrológico não escapa à essa consideração, e o projeto de uma Astrologia Esclarecida (em oposição a uma Astrologia de Senso Comum) deve incluir a interpelação de seus principais articuladores (astrólogos, estudantes, cliente e até “curiosos”) com a conseqüente exigência de explicações, justificações e explicitações de discurso, e não a simples assimilação e aceitação passiva de opiniões não-embasadas.
O discurso astrológico (assim como o discurso psicológico e filosófico, aplicável à interdisciplinaridade com a astrologia) deve se preocupar com sua própria problematização, legitimação e justificação, para poder ser considerado crítico e reflexivo. A argumentação astrológica não poder apenas “dizer e afirmar”, como muitas vezes o faz, mas precisa explicitar suas razões, sua hermenêutica (ou suas interpretações) e até mesmo seus fundamentos gnosiológicos mais profundos, independentemente das vozes alienantes que vociferam contra o questionamento embasado na gnoseologia astrológica.

Notas

(1) Hilton JAPIASSÚ e Danilo MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, p.250.

(2) Cf. Danilo MARCONDES, passim.

(3) Hilton JAPIASSÚ e Danilo MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, p.224.

Referências Bibliográficas

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

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